segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Serpente de Midgard




       O cotidiano não tem sido tão corriqueiro e a aventura está muito mais na minha cabeça, dentro de mim e nas próprias experiências de vida, experiências estas tão singulares que não vejo utilidade nem facilidade em compartilhar. Por isso esse espaço tem ficado em espera, mas, como li outro dia desses, esperar não significa desistir ou ignorar e esse sempre vai ser o cantinho para onde eu posso correr.

Passei o feriadão todo em casa, sem vontade ou possibilidade de sair, tentei me isolar no meu mundinho próprio buscando silêncio, paz e conforto. Bom, encontrei problemas com o silêncio, o isolamento e a paz.

Começando pelo silêncio. Quando queremos ouvir ondas, a chuva caindo na terra ou um show onde é impossível ficar na frente, agradecemos o fato do som se propagar, mas não precisava ser tanto assim. Na minha busca por silêncio, só o encontrei em parte da manhã. As tardes eram preenchidas por funks da pior estirpe, do nível mais baixo que um ser humano pode chegar. Meu querido vizinho é um adolescente, daqueles mais estereotipados possíveis e... bom, a verdade é que eu lamento muito por ele. O que ele não sabe é que não é o volume da música que me irrita, é a qualidade que me indigna. Saber que a cultura mais popular da minha cidade é subvalorizar as mulheres como um mero objeto sexual para satisfazer uma potência masculina que não é verdadeira, é criada - e muito mal-criada - por uma sociedade perversa que impõe padrões impossíveis de se alcançar. Como sintoma, vemos o uso de anabolizantes e viagras em todas as idades e sexo.

As letras pobres, banais, vulgares e repetitivas falam... bem, não era sobre sexualidade, nem erotismo. Sobre pornografia, talvez. Era sobre p#t@r!@ mesmo! De fazer inveja à qualquer pornochanchada dos anos 70. Além das letras com sílabas infinitamente repetidas para atingir a métrica empobrecida, gemidos e tiros são incluídos ao som que me recuso chamar música.

A sexualidade sempre foi tema nas artes. Na adolescência eu lia Gregório de Mattos. Nelson Rodrigues foi adaptado mil vezes para a televisão, já era nascida quando Wando estourou cheirando calcinhas, acho engraçadas as músicas de duplo sentido que meu pai e meu marido adoram, já vi o filme "De Olhos Bem Fechados", mas em tudo isso você percebe (nem que seja alguma coisa de) arte, de cultura, de ironia, de inteligência. Até a Tati Quebra-Barraco cantando "Daku é bom. Calma, minha gente, é a marca do fogão", é um trocadilho, tem alguma inteligência nisso. Não sei se foi a intenção dela, mas eu ainda vejo como uma crítica, que mostra que a maldade está nos olhos de quem quer ver. O que eu ouvi foi muito violento.

Pode parecer exagero, hipocrisia ou conservadorismo. Pensando bem, já me incomodei mais com isso tentando mudar as coisas, mas ando tão desesperançosa que acho que o que realmente me incomoda hoje é o fato disso afetar minha paz, reverberando em minha cabeça com pensamentos e análises sobre a consequência social disso tudo que pode parecer uma liberdade, mas essa liberdade é aprisionante em rótulos caros, muito caros, como Foucault expõe nos três volumes sobre sexualidade. A consequência? Funk ostentação, consumo, desigualdade, violência, coisificação* da mulher, estupro... e por ai vai. Não, não é só uma música para divertir, é uma ofensa à nossa capacidade de pensar e ser livre, quer dizer, ser um pouco menos preso por tudo isso que a sociedade nos impõe. Se fossemos realmente livres, faríamos sexo como queremos e não como e onde a letra nos diz que deve ser. Teríamos uma potência sexual natural e não essa superpotência que só se alcança com drogas. Dançaríamos essas músicas livremente, sentindo o efeito do som no nosso corpo e não rebolando engatados uns nos outros como cães cruzando. Isso deve fazer um mal enorme para a coluna também!

Quando ele liga o rádio, minha memória resgata uma música do Dishwalla, de noventa e tanto, que deveria estar defasada pelo tempo, e diz:


"Tudo sobre o mundo é o sexo
E é uma mensagem, da cultura popular
Contando todas as nossas crianças como fazê-lo direito
E por toda a sua inocência você pode se perguntar por quê?
por isso a necessidade?
por isso a necessidade de erotizar nossos filhos?
(Dishwalla, Pretty Babies)
Vídeo

À noite, como todo adolescente, ele sai de casa já bêbado para a "night", é meu momento de sossego. Ledo engano, é quando começam os cultos na Assembléia de Deus que tem próximo à minha casa. Na verdade, nem é tão próximo assim, são 500m, segundo o Google, mas não existem barreiras para o som e ele vem direto para a minha sala.

No mundo imundo em que estamos vivendo, penso que a fé seja fundamental. Não tenho preconceitos, realmente acho que todas elas levam à um caminho melhor do que o que estamos trilhando atualmente. Estou tão desesperada com a situação da sociedade que penso que seja importante acreditar em qualquer coisa! Só tem uma coisa que me incomoda nesse tipo de manifestação de fé, eles acham que Deus é surdo e que está fora de nós e muito longe e precisamos gritar à plenos pulmões para que ele nos ouça. Não estou falando das músicas. A música é um momento de entrega, é preciso se entregar sim. O problema são as pregações. Gente, será que é realmente necessário gritar desse jeito estando com um microfone na mão? Será que com toda a estrutura que aquela igreja tem não sobrou recurso nenhum para um isolamento acústico? Tenho um amigo responsável pelo som da igreja dele e me lembro bem que essa era uma de suas preocupações.
         Me remeto a outra música do Dishwalla, da mesma época, que se encaixa bem.


"Eu não quero falar sobre Jesus
Eu não quero continuar convertendo
Porque isso me faz sentir como
se estivesse falando com os pais do Charlie Brown"
(Dishwalla, Charlie Brown's Parents)

        Lembram como falavam os pais no desenho do Charlie Brown? "Wawawa wawa wawawa wa", uma onomatopeia significando que nada que os adultos falam tem sentido para as crianças. Hoje, nada do que se fala tem sentido algum para ninguém.

O que me incomodou mais, novamente, foram meus próprios pensamentos. Essa exterioridade divina e a necessidade de espetacularizar o que deveria ser uma experiência interior, uma rendição e não uma conquista. Isso fez mais barulho na minha mente do que a própria pregação.

Por falar em espetacularização, nos momentos em que tentava fazer meu cérebro calar a boca, buscava alguma besteira para rir nas redes sociais. Pois é, nem isso eu encontrei. O que eu vi foram fotos, muitas fotos dos rostos de pessoas na minha timeline. Todas elas faziam questão de mostrar onde estavam, o que estavam fazendo e como estavam lindas e felizes. Lembrei de um livro - muito chato que, confesso, fui obrigada a ler no colégio - chamado Pollyanna. Eu era criança e, na época, o livro não fez sentido algum a não ser aquela felicidade forçada que a menina procurava em tudo. Acho perda de tempo justificar uma analogia tão óbvia. O interessante das fotos era mostrar uma coisa e ser outra. Pelas legendas eu lia felicidade, diversão, amizade, ou seja, sucesso. Entretanto, as imagens diziam outra coisa completamente diferente. Sei lá, uns 85% das fotos só mostravam os rostos das pessoas, como se tiradas por elas mesmas, não se podia ver ao fundo a cidade onde estavam, o que estavam comendo ou bebendo, nem sequer podia ver que haviam outras pessoas junto. O que isso quer dizer? Eu sou feliz e não preciso mostrar? Mas se não preciso, por que estou expondo? Faço isso por que eu quero? O que eu quero, que as pessoas me vejam como um exemplo ou que tenham inveja de mim? Por que eu preciso tanto da opinião (ou só do like mesmo) das pessoas? Eu estou feliz mesmo ou só quero mostrar a felicidade em não ter que usar muletas, como a Pollyanna?

Tudo isso fez um escândalo na minha cabeça ao se juntar com as questões sobre o enaltecimento da sexualidade e a espetacularização da fé.Tentei calar a mente mais uma vez partindo para o lúdico, para a ficção. Fui ver um filme bem tosco e longe da realidade, escolhi um título qualquer com epidemia de vampiros. Minha avó sempre criticava meu gosto para filmes, dizia que a realidade já é muito violenta para ver sangue na TV, mas aquele eu posso desligar, sei que o sangue é falso, que as mortes não são verdadeiras. O verdadeiro filme de terror é um noticiário onde pai estupra filha, filho mata a mãe, uma pessoa mata a outra por uma correntinha de ouro ou celular.

Fato é que não dei sorte com o filme que escolhi, não era nada tosco. Apesar de de tratar de monstros, o verdadeiro vilão eram homens comuns de uma seita que acreditava em sua supremacia e usavam os vampiros para exterminar aqueles que eles consideravam fracos, menores que eles ou ameaçavam seu poder. O que eles faziam era deixar que as pessoas morressem pela sede dos vampiros. Ora se isso não é uma omissão mais que comum na nossa sociedade? Aqueles que se acham melhores, mais poderosos, usam isso para oprimir, humilhar, deixar morrer quem não interessa ou ameça sua soberania.

Percebi que é impossível se isolar mesmo em casa. Que a sociedade nos invade os espaços mais particulares, como escreveu Jurandir Freire Costa. Como conversei outro dia, acho que o público invadiu tanto nossos espaços que o movimento contrário se aproxima. Talvez essa seja a explicação, o verdadeiro motivo para as manifestações que andam acontecendo. São todos os motivos juntos, nos sentimos tão oprimidos pelo público que precisamos de espaço para extravasar. Se não temos este espaço em casa ou em nós mesmos, vamos para a rua!

Desisti de tudo e parti para a música, o Rock, aquele que sempre me aquietou. Vi um documentário sobre o Heavy Metal. Tudo ia muito bem, até investigarem todas as vertentes que descendem dele. Chegaram ao Death Metal e a associação com o satanismo. Foram para a Noruega, referência nesse estilo.

Para continuar, é fundamental um retrocesso histórico. A Península Escandinava tinha uma cultura politeísta (vários deuses), a Mitologia Nórdica, como conhecemos. Durante a expansão do Império Romano, como em toda Europa, os vikings, habitantes da península Escandinava e fieis da Mitologia Nórdica, foram considerados pagãos e forçados ao Cristianismo mediante duras batalhas. Apesar da força do exército viking, as estratégias do exército romano se sobressaíram e eles foram obrigados a se converter. Tempos depois, com a necessidade de se reagrupar para defender Roma e a falta de interesse nas terras nórdicas, o exército romano se retirou deixando alguns representantes e a falta de coerência em toda a violência e submissão usadas. Podemos entender porque existe uma forte rixa com o Catolicismo no lugar, que tem 80% da população Luterana. Essa mágoa histórica é que fundamenta a associação com o Satanismo.

O que o documentário mostrava é que a música popular na Finlândia e Noruega é o Black Metal, que de demoníaco só tem o uso das oitavas e o grave como referência da musica clássica advinda de Richard Wagner. O Death Metal é a vertente radical da coisa, consumido pelos Satanistas que são, na verdade, contra a questão histórica da imposição do Cristianismo, buscam compensação queimando igrejas e fazendo letras contrárias às crenças cristãs. O problema é que na seita satânica, acredita-se que seguir quem eles seguem é um privilégio para poucos merecedores e que os outros são menores, mais fracos e menos dignos que eles.

Ora se nesse ponto não chegamos à mesma argumentação semelhante a do filme? Um retrato da sociedade desigual, onde pequena parte que crê ser mais importante, merecedora, melhor, 'sei-lá-o-quê' que o outro o submete a suas vontades e potências.

Se, por uma visão maniqueísta, considerarmos que essa falta de igualdade e respeito pelo outro é uma questão satanista, devemos olhar para o rabo da nossa própria sociedade e pensar na representação do mal que também estamos adorando. Ou seja, por essa lógica, nossa sociedade também é satanista! Vivemos em competição, uns acreditam ou buscam ser melhores que os outros, quem é melhor tem vantagens, quem tem força coisifica quem é mais fraco, e por ai vai...

Se somos todos adoradores de Satã, por propagar o mal, a inveja e a ganância sobre o bem, o amor e o respeito, até entendo o desespero dos gritos da igreja. Talvez eles também escutem as músicas do meu vizinho e esperam que o som dos gritos de salvação sejam uma resposta a ele, uma tentativa de torná-lo uma pessoa mais respeitosa e com objetivos maiores do que se embriagar ouvindo música pornô com um monte de marmanjo e depois sair bêbado para fazer sei-lá-o-quê com as meninas por coação, coerção ou por que elas pensam parecido e aceitam ou se omitem ao que a música, reflexo (ou sintoma) do pensamento social, as reduz como promessa de inclusão.

O problema é que minha paz ficou no meio disso tudo e a cabeça não está em mim, está lá fora, cogitando as consequências disso tudo para a sociedade, pensando nas ações para o coletivo. O problema é que minha cabeça está em cima do meu corpo. O problema é que acabou a fluoxetina. Será que o problema sou eu? 

Nota:
* Transformar em uma coisa, um objeto, nada que tenha valor, particularidade ou propriedade individual

2 comentários:

Anônimo disse...

Se nao comentar aqui, vai inbox via fb. Beijao a nao para de escrever.

Bito

Digão disse...

Então, primeiramente gostaria de agradecer por isso: "Além das letras com sílabas infinitamente repetidas para atingir a métrica empobrecida,
gemidos e tiros são incluídos ao som que me recuso chamar música."

Vamos lá. Funk - Não tenho preconceito. tenho um pós-conceito. Conheço, sei o q é, é uma merda, logo, odeio e não respeito.

Com relação ao "todo" do seu texto, eu te entendo. E concordo em tudo com vc. Até pq, mtas vezes eu passei e ainda passo por isso. Afinal, não custa lembrar: Moramos em lugar carente de educação, cultura, respeito e bom senso. Só que aí é q está. Se pararmos pra analisar tudo aquilo q nos cerca, quando sabemos onde moramos, vamos surtar! isso é um fato. O que tento dizer é o seguinte: confie em seus instintos. Seu gosto. Em suas reprises. Veja, ouça, viva algo repetido; mas q te faça bem. É mto melhor do q buscar algo novo porém lixo.

As redes sociais são um retrato dessa nossa "sociedade" atual. Logo, não se pode esperar algo diferente do q vc citou.

Pra fechar e não me prolongar ainda mais, tente ver as poucas coisas positivas q ainda restam pra nossa "sociedade" (Sociedade - é um conjunto de seres que convivem de forma organizada).

Sei q são mto poucas. Mas ajudam a suavizar um pouco a dor.

Bjo grande e keep writing!